Manobra: a mão na dobra

Na série de poemas visuais Manobra de Heimlich a Liliana mostra que tem algo a dizer (cf. poema “eu tenho algo para dizer”) — e não só esse algo precisa de sair cá para fora (ser cuspido mesmo, pela acção de compressão do diafragma) como é significante na forma como o faz.

E, para falar sobre a forma, é melhor abrir aqui um novo parágrafo, porque também eu tenho ainda algumas coisas a dizer. Primeiro, há a forma que os poemas tomam no espaço gráfico da página: são manobras verbais hibridizadas com formas visuais. Depois, e não menos importante, há a forma como os poemas se materializam fisicamente: não ocupam um livro (que daqui não se deduza que eu sou contra os livros, longe disso), partem para outro contexto — para já, e até final do mês de Fevereiro, estão expostos na Fábrica do Braço de Prata. (É ir lá, é ir lá!) Não faz sentido que estes poemas encontrem suporte num livro em papel ou em meio electrónico? Faz. Aliás, eles até estão aqui, on-line portanto, e quem sabe se daqui a uns tempos não apetecerá à autora estampá-los no papel. A mim, pessoalmente, parece-me é que o facto de a Liliana ter partido para uma exposição desta sua série de poesia tem implicações particulares, marca uma posição — a poesia não é só para ser lida, é também para ser vista e para ser ouvida e apalpada (cf. poema “Apalpa-me”).

Se quisermos ir ainda um pouco mais longe (eu quero sempre, por isso já abri um novo parágrafo), o trabalho que a Liliana nos apresenta é também radical neste aspecto: no campo da sua poesia (que é verbal e é também já pictórico) apropria formas e discursos de um outro campo, também ele já híbrido por si, que é o da banda desenhada. No uso cruzado que é feito destes dois campos artísticos, a Liliana desestabiliza as convenções tanto da poesia como da BD. Coloca-se, por isso, numa no man’s land (ou no woman’s land), muito provavelmente incapaz de agradar a amantes de uma certa poesia por aí enraizada e também de escasso interesse para os mais ortodoxos amantes da banda desenhada. O que vale é que a sua poesia não é feita para agradar a ninguém. De outra forma, não andaria na Candonga (um bocadinho ao lado, mas, ainda assim, com algumas relações com este tópico cf. poema “Onde me pões”).

Pegando no que vinha a dizer (e ainda assim abrindo um novo parágrafo), quero ainda chamar a atenção para a insubmissão às ordens sociais dominantes dos poemas desta moça (não sei é possível que a radicalidade da forma surja indissociada da radicalidade do conteúdo, mas passemos à frente nesta discussão). Na apropriação que vários dos poemas fazem de discursos reais, o poema aparece como uma caixa de ressonância (algumas apropriações mais parecem ficção mas infelizmente não o são, cf. poema “Um ju”; outros são tão reais que podem muito bem ser o nosso vizinho do lado a falar… pensando bem o anterior exemplo também se aplica aqui, para nosso grande mal). Boa parte do trabalho poético desta série surge, portanto, da manobra de descontextualização e recontextualização que é feita pela autora — “Contexto, miúda” (para ver esta citação em contexto cf. poema “The same text”). Este movimento, ao reproduzir práticas e discursos, actua de forma a expor convenções sociais e ideológicas, questionando-as e confrontando-as no espaço político da língua (cf. poema “A língua”).

Por outro lado, esta estratégia destrói por completo o conceito de autoria romântica e faz esse fetiche autoral rastejar na lama, só por gozo — “se estás à procura de um conceito de amor ou ódio” (cf. poema “se estás à procura”), pá, vai procurando e acabarás por encontrar algo muito mais interessante do que isso.

Cavaco procura amor e ódio nos poemas da Liliana

About Bruno

My name is Bruno and I hold a Ph.D in Materialities of Literature (U. Coimbra). I’m also a poet and performer who believes in a practice-based research model for knowledge production.

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